Ana Paula Mauriel e Priscila Keiko, ambas pesquisadoras e docentes da Escola de Serviço Social da UFF, comentam a importância das Ciências Humanas e Sociais em meio ao contexto de pandemia.
Com quase 18 meses de gestão, Jair Bolsonaro e o grupo que o acompanha adotaram discursos e práticas que evidenciam o desprezo pelo conhecimento científico produzido nas instituições públicas de ensino superior.
Houve aprofundamento do corte de recursos para universidades e institutos científicos, o esvaziamento de programas de fomento e a drástica redução de verbas e de bolsas para instituições como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Cnpq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – respectivamente vinculadas ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e ao Ministério da Educação (MEC).
Entre um Ministério e outro, houve quem falasse em balbúrdia, plantação de maconha, zebras gordas e parasitas para referir-se ao ambiente acadêmico e aos servidores públicos. Como alertam profissionais de diferentes áreas do conhecimento e sindicalistas, o governo deixa claro, em meio a tantos retrocessos, a visão obscurantista que tem da produção científica no país. Não à toa, a presidência da Capes é ocupada por um docente que refuta a teoria darwinista para justificar a existência humana a partir da concepção do ‘design divino’. No governo Bolsonaro há quem também acredite em terra plana, conspirações comunistas, kit gay e ideologia de gênero.
Há poucos dias, o MCTIC publicou a portaria 1122, de 19 de março, que excluía áreas do conhecimento – como ciências básicas, aplicadas, humanas e sociais – da alocação de recursos do CNPq e da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) entre 2020 e 2023. De acordo com o documento, a dotação orçamentária priorizaria apenas projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovações para cinco áreas de tecnologias: Estratégicas; Habilitadoras; Produção; Desenvolvimento Sustentável; Qualidade de Vida.
A medida causou indignação na comunidade acadêmica e entre sindicatos e a portaria foi alterada. Em novo texto, publicado no dia 30 de março, o MCTIC adicionou o parágrafo único: “São também considerados prioritários, diante de sua característica essencial e transversal, os projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais que contribuam para o desenvolvimento das áreas definidas nos incisos I a V do caput’.
A SINDUFFS, ADUFFS e o ANDES-SN seguem reivindicando a revogação da portaria 1122 na integralidade por entenderem que reproduz a visão obscurantista e elitista do governo atual de que a ciência tem apenas caráter utilitário, deve estar voltada para o Capital, e que pesquisas e produção do conhecimento nas áreas de ciências sociais e humanas são descartáveis.
Neste contexto, o governo publicou ainda a Portaria 34, que alterou de forma abrupta processos em curso de concessão de bolsas da Capes no país. Como alertam entidades sindicais e diversas associações científicas, a medida pode levar a redução de bolsas de Mestrado e de Doutorado – tendo impacto especialmente significativo para os novos cursos e para aqueles classificados com notas 3 e 4.
Ataques compõem projeto maior
Ana Paula Mauriel, docente da Escola de Serviço Social da UFF, afirma que todos esses ataques não podem ser compreendidos de forma isolada, sobretudo quando o governo se volta para um projeto que pretende reestruturar a função social da Universidade, tal como o ‘Future-se’. “Eles compõem parte de um processo de reorientação do sistema nacional de pós-graduação em direção ao reforço da mercantilização da pesquisa, da produção de conhecimento e da formação pós-graduada, em que um dos principais vetores aponta para o alinhamento entre programas de pós-graduação e empresas, reforçando a submissão da produção de conhecimento aos parques tecnológicos e requisitos econômicos. Por outro lado, revela uma visão distorcida de ciência, em que só é ciência a produção de tecnologia voltada ao desenvolvimento econômico submetida à lógica do mercado, aquele conhecimento que está a serviço dos lucros”, afirma a docente.
Segundo Ana Paula, a maior contribuição das ciências humanas e sociais diante do contexto de pandemia é a arma da crítica. “Embora não substitua a crítica das armas, como nos afirmou Marx, nos mostra como as ideias se convertem em força material quando se apoderam das classes em luta, para o bem e para o mal”, afirma a pesquisadora.
Para ela entender para quê, porque e pra quem se pesquisa e se produz conhecimento são questões fundamentais para conectar a pesquisa com as demandas sociais dos/as trabalhadores/as e socializar as reflexões e análises que alimentam as lutas sociais por transformações profundas no Brasil e em outros países. “Nesses tempos de decadência cultural, a importância das ciências humanas e sociais ganha vitalidade com base real na luta pela vida, quando é perceptível que o direito à vida é colocado em questão”, afirma a docente.
De acordo com Priscila Keiko C. Sakurada, assistente social e docente do Departamento de Serviço Social da UFF, no senso comum, quando se fala das Ciências Humanas, as primeiras identificações são aquelas ligadas à docência ou de alguém que apenas pensa a sociedade. “Só que esquecem que os profissionais desta área também estão atuando nos mais diversos espaços sócio-ocupacionais (saúde, assistência social, previdência, judiciário, habitação, educação, movimentos sociais e outros) e trabalhando na elaboração, planejamento e execução de políticas públicas, programas, serviços, políticas sociais e atendimentos”, afirma a docente. “Não é um mero profissional que teoriza e fala da sociedade, é um profissional dotado de conhecimentos que vai contribuir na mediação das condições objetivas que atravessam a complexidade das relações sociais e na forma como nos relacionamos com o meio ambiente”, considera.
Para Priscila Keiko, os profissionais de Ciências são responsáveis por analisar e propor ações direcionadas às complexidades da vida humana em sociedade, entendendo que diversos fatores atravessam e determinam as formas como nos relacionamos de forma individual e coletiva. “Quando o Governo, o Ministro da Educação, o MBL, Escola sem Partido e outros acusam a área das ciências humanas de ideologização, o que eles fazem não é apenas atacar esta área. Há interesses que estão vinculados às condições estruturais de dominação e manutenção do modo de produção e reprodução capitalista. E atacam esta área porque é onde estes dados são revelados. Então, quando nos acusam de ideologização, na verdade o que eles estão fazendo é tentar evitar que o status quo dos interesses dominantes conservadores e capitalistas sejam questionados. Todo mundo é guiado por uma ideologia, a questão é: o que estamos fazendo para alterar esta realidade de desigualdades?”, pergunta.
Ciências Humanas e Sociais em meio à pandemia do Covid-19
Segundo Ana Paula Mauriel, os pensadores que compõem as diversas áreas de ciências humanas e sociais têm buscado refletir sobre as polêmicas recentes em torno dos cenários que se abrem com a pandemia do coronavírus. “Impactos sociais, balanços com indicadores, questões políticas, subjetivas e desdobramentos psicológicos, para diferentes tipos de populações em diferentes regiões, territórios, considerando questões como racismo, gênero e classe social têm surgido em forma de textos, lives, podcasts, etc., para debater controvérsias sobre o presente e prever possíveis hipóteses futuras. Um enorme esforço tem se somado aos profissionais da área da saúde para potencializar o combate à pandemia”, considera a docente.
Priscila Keiko alerta que durante esse período de distanciamento social, diversas preocupações foram acenadas pelos profissionais da área de Ciências Humanas e Sociais, como a forma desigual como as medidas estão atingindo especialmente os segmentos mais pauperizados, que já contam com a insegurança das relações trabalhistas, com condições habitacionais e de saneamento precárias ou ausentes. “Estas questões vão se somar e impactar nas condições que estes sujeitos estão acessando os serviços de saúde e nas possibilidades concretas de contribuir nas medidas de prevenção à contaminação. Não dá para pensar medidas e ações na área da saúde, anulando as contribuições das outras áreas para pensar de forma factível o que é possível fazer em uma sociedade marcada pela desigualdade de classe, renda, raça, sexualidade e de gênero. Não dá para falar em campanha de prevenção e cuidado sem considerar as condições precárias de trabalho e vida dos sujeitos que se encontra na miséria ou extrema miséria. Do contrário, teremos propostas que não são capazes de se objetivar e que podem vir a excluir uma parcela considerável da população brasileira”, analisa a professora.
Segundo Priscila Keiko, a Covid-19 está colocando em xeque a forma como as pessoas se relacionam em sociedade nos mais diversos espaços e no próprio sistema capitalista. “E esse debate não é algo novo para a área de humanas. Há um bom tempo temos indicado a forma como nos relacionamos, como e de que forma consumimos, como se organiza o mundo do trabalho nos mais diversos contextos e tempos históricos, como os governantes investem ou não em políticas sociais, os investimentos em pesquisas, como os afetos são construídos. É óbvio que hoje, em um contexto de pandemia, estes assuntos são exponenciados”, analisa.
Fonte: Aline Pereira/ADUFFS com informações do ANDES-SN (07 abr 2020). Adaptado.