O país recém deixou para trás, em termos eleitorais, mais uma página infeliz de nossa história. O fascismo foi derrotado nas urnas e algumas ações do novo governo geram alento diante do atual cenário de luta. A Diretoria do ANDES-SN esteve atuante em todo este processo, consciente de que, neste novo cenário, inúmeras pautas seguirão presentes, sobretudo tendo em vista os interesses mais gerais da classe trabalhadora e os da categoria docente em particular. Uma dessas pautas é o “teto de gastos”, agora apresentado com renovação em sua nomenclatura: “novo arcabouço fiscal”.
O Projeto de Lei Complementar (PLP 93/23), que propõe instituir um novo regime fiscal, já teve uma primeira votação na Câmara de Deputados na quarta-feira 17/05, passando com larga vantagem o regime de urgência, o que implica que o texto será encaminhado diretamente ao plenário, movimento que o governo pretende fazer já essa semana (22/5 a 26/5). A pressa do governo é inversamente proporcional à capacidade de mobilização de diversas categorias, dificuldade esta que se intensifica frente a setores que pesam mais a “sustentação do governo” do que a defesa dos interesses da classe.
A Diretoria do ANDES-SN é terminantemente contrária à proposta apresentada pelo governo, e destaca aqui, num esforço de síntese, três argumentos neste sentido.
Um primeiro aspecto a ser destacado é que a política fiscal do governo expressa a disputa pelo fundo público, uma disputa que é eminentemente política. Em nenhum momento tal disputa pode deixar sobrepor os aspectos técnicos à luta política em torno da manutenção e andamento fiscal do Estado. Neste sentido, não podemos naturalizar argumentos que partem do pressuposto da necessidade imprescindível da austeridade fiscal. Conscientes de que a questão da dívida pública é complexa e não deve ser menosprezada, é urgente mudar o foco de como encaramos esta questão: um país que não faz política fiscal para o crescimento econômico e para gerar emprego não fomenta a arrecadação. É preciso pensar a questão da dívida pública a partir nas necessidades da classe trabalhadora, entre as quais uma das mais sentidas é a geração de empregos. Ações que bloqueiam uma política expansionista ativa vão na contramão da necessidade histórica de criação de empregos. Para se ter uma ideia, durante os dois primeiros governos de Lula a média de crescimento do gasto público foi de 5% do PIB; agora, caso o PLP 93/23 seja aprovado, o máximo de crescimento do gasto público, no cenário mais otimista, será de 2,5% do PIB. Trata-se de uma medida que controla o gasto em tudo que é importante para a classe trabalhadora e mantém intacto o gasto financeiro do Estado.
Em segundo lugar, um olhar mais centrado em nossa categoria também aponta para a luta contra o “calabouço fiscal”. No caso de descumprimento das metas estipuladas no projeto haverá contingenciamento de despesas discricionárias, que nas universidades, institutos federais e CEFETs significa: bloqueio de recursos para seu funcionamento e para política de assistência estudantil, obras, contratação de serviços de terceirização, entre outros. Para o caso de descumprimento por dois anos consecutivos, poderão ter novos bloqueios, como não aumento de salários do funcionalismo público, admissão ou contratação de pessoal e realização de concurso público. É uma política absolutamente contrária diante do quadro gravíssimo das universidades após os diversos cortes orçamentários do último período e também diante da falta de recomposição salarial que nossa categoria padece. Ao manter a linha política de naturalizar a ideia de que seria necessário algum tipo de “teto de gastos”, o governo mandou um projeto para o Congresso que nesse momento tem sido piorado pelo relator Cláudio Cajado: o exemplo disso é o fato do FUNDEB que estava “fora” da EC 95, ser agora incluído no texto substitutivo em debate, acelerando o caminho de mais roubo dos recursos da educação para a lógica da dívida.
O terceiro ponto a ser destacado aqui é a própria contradição interna ao governo em relação a algumas pautas fundamentais e o próprio projeto apresentado. O Ministro Silvio Almeida, em seu livro Racismo estrutural, expressa de forma precisa e potente: “Chama-se por austeridade fiscal o corte das fontes de financiamento dos direitos sociais a fim de transferir parte do orçamento público para o setor financeiro privado por meio dos juros da dívida pública”. E mais adiante complementa: “A captura do orçamento pelo capital financeiro envolve a formulação de um discurso que transforma decisões políticas, em especial as que envolvem finanças públicas e macroeconomia, em decisões ‘técnicas’, de ‘especialistas’, infensas à participação popular”. E segue: “Como não serão integrados ao mercado, seja como consumidores ou como trabalhadores, jovens negros, pobres, moradores de periferia e minorias sexuais serão vitimados por fome, epidemias ou pela eliminação física promovida direta ou indiretamente pelo Estado – um exemplo disso é o corte nos direitos sociais”. Para dar um exemplo pontual, o teto de gastos tirou 37 bilhões de reais do SUS entre 2018 e 2022, e sabemos que duas a cada três pessoas no Brasil dependem do SUS, sendo que mais de 80% dos usuários do SUS se autodeclaram negro(a)s. Ou seja, é absolutamente certa e necessária essa reflexão de Silvio Almeida. E é preciso levar essa reflexão às suas últimas consequências políticas.
A partir desses argumentos bastante sintéticos, consideramos que o debate sobre a nova regra fiscal deve ser ampliado na categoria e no debate público como um todo, quebrando a urgência com a qual se apresenta e denunciando o falso consenso que a recente votação no congresso pareceria expressar. Neste falso consenso há quem argumente que o novo arcabouço fiscal é melhor que o teto de gastos, que chamamos em seu momento de “PEC da morte” ou mesmo “PEC do fim do mundo”; pois bem, seria risível, se não fosse trágico, a defesa de algo como menos pior que o fim do mundo. A urgência que de fato temos é romper completamente com o teto de gastos, e isso passa pela mobilização popular em torno da necessidade de investimento público nas áreas fundamentais como saúde, educação, infraestrutura, saneamento básico, etc. Não será um novo teto que resolverá essas questões centrais.
Brasília (DF), 23 de maio de 2023.
Diretoria Nacional do ANDES-SN