Nota Técnica da AJN do ANDES-SN sobre o PL 5.595 que torna Educação atividade essencial

Vimos, por intermédio da presente Nota Técnica, em atenção à solicitação feita a esta Assessoria Jurídica Nacional (AJN), apresentar análise do teor do Projeto de Lei (PL) no 5.595, que reconhece a educação básica e a educação superior como serviços e atividades essenciais e estabelece diretrizes para o suposto retorno seguro (sic) às aulas presenciais.

O PL no 5.595 foi apresentado em 18.12.2020 pelas deputadas Paula Belmonte-CIDADANIA/DF, Adriana Ventura-NOVO/SP, Aline Sleuties-PSL/PR e outros, todas componentes da base de apoio do governo federal na Câmara dos Deputados, e justificado diante de uma limitação na adoção do ensino remoto em nosso país.

Originalmente, o PL no 5.595 continha apenas 3 (três) artigos, porém foi acrescido de emendas por sua relatora na Câmara, deputada Joyce Hasselmann, que incorporaram ao seu texto protocolos para o retorno escolar, e foi aprovado em 20.4.2021 pelo Plenário da Câmara dos Deputados e remetido ao Senado Federal, cujo relator é o Senador Marcos do Val, do PODEMOS/ES.

No Senado Federal, o PL no 5.595 foi incluído em ordem do dia 28.4.21, mas após forte pressão das trabalhadoras e trabalhadores, não chegou a ser votado pelo plenário e até o momento não há previsão de quando isso irá ocorrer.

Da análise jurídica do PL no 5.595, que formaliza legislativamente a política de morte estabelecida pelo atual governo, pautada pelo negacionismo da pandemia e pelo menosprezo à vida, surge a sua patente inconstitucionalidade frente à vários dispositivos da Constituição, em especial aqueles que protegem a vida e a saúde.

O PL reconhece que a educação no formato presencial é atividade essencial e que, portanto, a suspensão da presencialidade ocorreria somente em circunstâncias excepcionais, excluindo de forma irresponsável a pandemia de coronavírus como uma situação excepcional de per si, renegando a sua consideração à uma apuração técnica e científica.

Outrossim, há uma clara discrepância na compreensão do que seria atividade essencial, por mais que a importância da educação seja inquestionável, mas o direito à educação presencial não está à frente do direito à vida e à saúde, sobretudo em um cenário crítico e de risco, em que faltam leitos hospitalares, insumos básicos e vacinas, como é o atual da pandemia.

Nesse contexto, querer pretender o retorno presencial da educação e expor os trabalhadores da educação, os alunos e seus familiares ao Coronavírus (SARS-CoV-2) e a consequente contração da doença relacionada ao referido agente biológico (COVID-19) lhes atinge a dignidade humana, a integridade física e a saúde, de modo a ocasionar danos a outros aspectos da personalidade, bens jurídicos tutelados expressamente pela Constituição Federal em seus artigos 1o, III, 5o, caput e 6o, nos seguintes termos:

“Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(…)
III – a dignidade da pessoa humana.” (Destacou-se)
(…)
“Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.” (Destacou-se)
(…)
“Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (Destacou-se)

Por outro lado, olvida-se o PL de que a educação é, antes de uma ordem de serviço, um direito universal e assim o sendo é dever do Estado, da sociedade e da família garantir condições para que seja preservado. Ora, é justamente por tratar-se de um direito, que a proteção aos sujeitos deve prevalecer à própria conclusão do objeto tratado, não podendo a oferta da educação ser posta a qualquer risco e forma.

No que diz respeito à conceituação de atividade essencial, a Constituição Federal ao estipular o direito de greve, na Lei no 7.783/89, foi incipiente quanto à natureza destas atividades: são aquelas que colocam em “perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Hoje, todavia, tal conceito foi completamente deturpado para se encaixar ao senso comum de essencialidade, qual seja, aquilo que é tido como atividade importante.

No entanto, a definição de atividade ou serviço essencial não pode ser feita ao bel querer ou à fundamentação comumente utilizada, mas guiar-se por razões objetivas pautadas em necessidades inadiáveis que coloquem em perigo iminente a sobrevivência da população. Veja que a relação aqui é de regulação feita a posteriori da concussão de fatos que ensejem risco e não o contrário.

O que faz o PL é querer sobrepor a norma à constituição do fato, porquanto cria a iminência de risco advinda de fato passível de ser resolvido por outras formas de gestão que garantam os direitos fundamentais da pessoa humana. É o que vem sendo feito com o ensino a distância e a
subsistência do distanciamento social.

A vulgarização dos importantes conceitos de serviços e atividades essenciais de que trata a Carta Maior vilipendia a condição primordial para o alcance da natureza de essencialidade, a saber, subsistir uma causalidade direta e inadiável para a sua conclusão. De se ver que o rol de atividades essenciais não classifica atividades como direitos de maior ou menor importância social ou jurídica, mas sim quanto a inadiabilidade de atividades frente a situações de iminente risco à saúde, sobrevivência ou segurança da população.

Ao estender a essencialidade à educação, as escolas ficam impossibilitadas de parar independentemente do contexto vivenciado. Ora, numa conjectura de pandemia em que o índice de contágio e de óbitos está muito superior ao que pode ser considerado “controlado” dentro dos limites aceitáveis, submeter docentes, demais profissionais da educação, alunos e toda a sociedade que orbita ao seu redor ao ensino presencial comprometendo a vida destes, é contrariar a própria noção de serviço essencial, que visa justamente assegurar o funcionamento de atividades que preservem a vida das pessoas.

Noutro passo, o art. 2o do PL ao enquadrar o ensino presencial como serviço essencial inverte a lógica dos bens jurídicos sopesados pelo art. 9o, §1o da CF. Porém, a AJN entende que não há uma limitação direta ao direito de greve, smj, na medida em que ele não pode contrariar a determinação da Constituição Federal, tampouco a sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto.

Sobre esse ponto, cumpre esclarecer que o direito de greve dos servidores públicos civis da iniciativa pública está previsto em norma constitucional de eficácia limitada e, em razão da omissão legislativa, o Supremo Tribunal Federal, nos autos dos Mandados de Injunção 670, 708 e 712, adotou a posição concretista geral e determinou a aplicação temporária ao setor público, no que couber, da Lei de Greve vigente no setor privado, até que o Congresso Nacional edite a lei regulamentadora.

Na mesma seara, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, reiteradas vezes reconheceu a legalidade do movimento grevista no âmbito da educação distrital, hipótese em que a única condicionante imposta foi no tocante à disponibilização de um mínimo contingente para que se possa viabilizar a oferta educacional. Veja-se:

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AGRAVO INTERNO. DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. SINDICATO DOS PROFESSORES NO DISTRITO FEDERAL. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. FIXAÇÃO DE LIMITE MÍNIMO DE PESSOAL EM ATIVIDADE DURANTE O MOVIMENTO PAREDISTA. POSSIBILIDADE. CORTE DO PONTO DOS GREVISTAS. MULTA. DECISÃO PARCIALMENTE REFORMADA.

1 – Nos termos do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do MI no 708, foi considerada inconstitucional a omissão legislativa referente à regulamentação do direito de greve dos servidores públicos (artigo 37, VII, Constituição Federal), motivo pelo qual se determinou a aplicação, no que couber, dos parâmetros insculpidos na Lei no 7.783/1989, até que sobrevenha regulamentação específica sobre o tema.

2 – Na situação dos autos, como se trata de movimento grevista que afeta a educação distrital, não necessariamente compreendido no rol de serviços públicos essenciais, não é possível se falar, primo ictu oculi, em ilegalidade da greve. Ademais, dadas as peculiaridades do caso, é razoável a determinação de retorno de 50% (cinquenta por cento) dos professores ao exercício da função, com o intuito de mitigar os efeitos do dissídio coletivo, o que, caso não obedecido, configurará abuso do direito de greve.

3 – Não se faz necessário, desde logo, o corte de ponto dos professores participantes do movimento paredista, se atendidas as determinações judiciais de obediência a limite mínimo de pessoal em atividade.

4 – Não se justifica a aplicação de multa em virtude da greve para os casos em que, respeitada a determinação judicial, houve retorno ao labor, com a correspondente compensação ou, ainda, no caso de negociação realizada entre o movimento grevista e o Poder Público, sem a exigência da respectiva compensação. No caso dos autos, entretanto, a incidência de multa se justifica apenas caso não seja observado o percentual mínimo de pessoal em atividade determinado. Agravo Interno parcialmente provido. Maioria. (TJ-DF 07033976420178070000 DF 0703397-64.2017.8.07.0000, Relator: HECTOR VALVERDE, Data de Julgamento: 10/07/2018, 1a Câmara Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 28/08/2018 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)

Pois bem, a luta em prol de condições humanas e seguras para reabertura das escolas tem sido pauta constante dos docentes e servidores da educação desde as primeiras medidas de enfrentamento da pandemia, outrossim, o empenho no pleito por infraestrutura nas instituições públicas é histórica; se pouco foi feito em relação a isso, deve-se cobrar dos órgãos responsáveis e não criar dispositivos legais que mais geram insegurança jurídica e não possuem certeza nenhuma de eficácia futura.

O direito de greve dos docentes não poderá ser atingido para atender uma necessidade social que, embora relevante, não atinge diretamente a vida, saúde e segurança da população.

Resguarda-se a greve como direito dos trabalhadores de forma a ser decidida e aprovada com base nas necessidades de cada categoria e na defesa de seus interesses. Senão vejamos:

Art. 9o É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

§ 1o A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

Assim, a ideia de que o PL cingiria o direito à greve é limitar, também, a liberdade de agir e defender interesse divergente do ora posto, o que caracteriza descomunal absurdo porquanto
subjaz à educação, como formadora de cidadãos, vivificar um espaço constructo de conhecimento e emancipador na propagação de ideias e opiniões.

A ficção jurídica do PL também se encontra albergada pela inconstitucionalidade do art. 3o que falsamente busca imprimir a ideia da existência de necessidade de cooperação entre os entes federativos, quando, em verdade, injunge aos estados e municípios subordinação às orientações sanitárias definidas pela União, veja:

Art. 3o As diretrizes e as ações decorrentes da estratégia para o retorno às aulas presenciais em cada sistema de ensino serão adotadas com base no exercício da pactuação entre os entes da Federação, em regime de colaboração, e respeitarão as orientações das autoridades sanitárias brasileiras, em especial as do Ministério da Saúde e suas autarquias e fundações vinculadas.

De tal sorte que o imperativo deste artigo vai de encontro à tese definida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 6343, no qual decidiu que “estados e municípios, no
âmbito de suas competências e em seu território, podem adotar medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local durante o estado de emergência decorrente da pandemia, sem a necessidade do Ministério da Saúde para a decretação de isolamento, quarentena e outras providências.”

Em verdade, a crise de gestão esboçada pela pandemia do coronavírus dilucidou os entraves para a articulação entre os entes federativos decorrentes da indefinição de papéis e a constante ingerência da União em matérias de interesse local. Como agravante, a disputa amiúde protagonizada pelo Presidente de um lado, governadores e prefeitos de um outro, não deixam dúvidas quanto ao desastre que pode ser a proposta de um “federalismo cooperativo”, nos moldes que se aventa no PL no 5.595.

Gize-se que as discussões em prol de políticas públicas compartilhadas substanciam negociações e acordos que envolvam distintas arenas políticas, o cenário, contudo, não parece favorecer tais concórdias porquanto a competição político-eleitoral mostra-se como pedra de toque dos discursos e ações políticas, em prejuízo da tão alvitrada “cooperação federativa”.

Por conseguinte, quando se trata do (des)governo na gestão de saúde e educação pública, de grandes impactos orçamentários, esse embate político-institucional, imantado pelas constantes violações das autonomias federativas, só dificultam a atuação local de modo eficaz no combate à pandemia e em outros setores públicos correlacionados.

Por outro lado, não bastasse a violação à autonomia garantida pelo pacto federativo, o PL atinge frontalmente a autossuficiência gerencial garantida às Universidades pelo texto do art. 207 da CF:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial.

O desígnio deste artigo resta evidenciado na condição unânime que possuem as universidades de preservarem direitos e liberdades essenciais à comunidade e ao ensino. Tolher esse direito é regredir à própria conquista de independência destas instituições que embora medievais, lograram adaptar-se e sobreviver aos percalços da sociedade moderna.

Ante esse contexto, o que se vê com a tentativa de inclusão da educação no rol de atividades essenciais é mais uma manobra de flexibilização de regras sanitárias: negligenciando estatísticas, negando a ciência e decompondo um sistema de saúde frágil e inabilitado.

A proposta do PL não afigura defesa da educação, mas uma política indiligente à vida, calcada na omissão em estabelecer medidas eficientes de enfrentamento da pandemia, no esforço em desinformar a população sobre a gravidade da doença e no projeto de deterioração crescente das condições mínimas necessárias para manter de pé o ensino de qualidade e a pesquisa, especialmente nas universidades públicas.

A solução não está na disrupção imposta ora pela reabertura imprudente que se tenta impor, ora pelo fechamento geral e indiscriminado. A passagem intermediária reside na necessidade de se pressionar o poder público pela garantia de condições que tornem seguras as retomadas presenciais. Esta é a única forma, defronte deste cenário, de garantir um retorno de atividades presenciais respeitando o direito não só a educação mas, sobretudo, à vida.

Sendo o que tínhamos para o momento, colocamo-nos à inteira disposição para quaisquer esclarecimentos que sejam necessários.

 

Atenciosamente,

Leandro Madureira Silva
OAB/DF no 24.298
Assessoria Jurídica Nacional

 

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