Desde sua posse, Jair Bolsonaro tem agido de forma arbitrária e nomeado reitores que, embora constem na lista tríplice encaminhada à Presidência da República, receberam votação pífia e estão longe de representar a vontade da maioria que compõe a pluralidade acadêmica.
A Medida Provisória (MP) Nº 914, de autoria da Presidência da República, foi publicada pelo Diário Oficial da União (DOU) em 24 de dezembro de 2019. Seu objetivo é modificar o processo de escolha dos dirigentes das universidades federais, dos institutos federais e do Colégio Pedro II. Dentre outras medidas, a MP extingue a paridade entre professores, técnico-administrativos e estudantes, que vinha sendo adotada há anos em diversas instituições, e determina que os reitores passarão a ser escolhidos mediante consulta à comunidade acadêmica, de preferência por meio de votação eletrônica.
Atualmente, o reitor já é escolhido pelo corpo docente, por meio de uma votação de uma lista tríplice. É tradição que o candidato que receba mais votos tenha seu nome sancionado pelo presidente da República e exerça quatro anos de mandato. “Legalmente, a Lei No 9.1992/95 permite que o presidente opte por qualquer um dos três candidatos que constem na lista tríplice”, explica Cláudia Roma, presidenta do Sindicato dos Professores da Universidade Federal da Grande Dourados (ADUF Dourados).
“Em respeito à escolha da comunidade universitária, o nome mais votado dessa lista vem sendo sancionado há pelo menos 15 anos. Mas, desde sua posse, o presidente Jair Bolsonaro tem sistematicamente optado pelos candidatos alinhados politicamente ao Governo, mesmo quando estes obtêm votação pífia”.
Nos primeiros seis meses de governo, Bolsonaro interveio em seis das 12 universidades federais que elegeram novos reitores. “Interpretamos a não nomeação dos vencedores como um violento ataque à democracia e à autonomia universitária”, afirma Cláudia.
“A autonomia universitária está inscrita na Constituição justamente para que o espaço acadêmico tenha independência para discutir ideias, realizar pesquisas e atuar com independência científica”, salienta Vicente Ribeiro, coordenador da Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal da Fonteira Sul (SINDUFFS).
“Universidade não é órgão de Governo, mas uma instituição de Estado dotada da autonomia necessária para cumprir sua função”.
Intervenção e judicialização
Segundo Cláudia Roma, a UFGD enfrenta uma situação extremamente grave, com a nomeação de uma reitora pro tempore devido à judicialização da lista tríplice pela ação de um procurador do Ministério Público Federal. “Alegando irregularidade na escolha dos nomes para reitoria, o procurador ajuizou ação civil pública que resultou na suspensão da lista tríplice pela Justiça Federal de Dourados”, informa o documento intitulado “Lista tríplice, intervenção e autonomia universitária”, elaborado pela ADUF Dourados. De acordo com o texto, a liminar foi derrubada alguns meses mais tarde e a mesma Justiça Federal reafirmou a plena legalidade dos procedimentos da eleição.
“Novamente validada, a lista tríplice pode e deve ser reenviada ao Ministério da Educação, o que não vem sendo feito pela reitora temporária, que, na prática, atua como interventora do Governo Federal, ferindo assim a autonomia da universidade”.
Na UFFS, o Conselho Universitário aprovou, em 30 de setembro de 2019, um pedido de destituição do reitor Marcelo Recktenvald, terceiro colocado na lista tríplice e nomeado por Bolsonaro em 30 de agosto. “A proposta de destituição do reitor recebeu 35 votos favoráveis, 12 contrários e duas abstenções. Na nossa avaliação, 51 dos 54 membros estavam aptos a votar, mas o reitor alega que a maioria teria de ser de 36 votos, ou seja, a maioria exigida perante o número de 54 membros. E assim, por meio de manobras jurídicas e sem acatar a vontade da maioria da comunidade acadêmica, ele permanece no cargo”, discorre Vicente Ribeiro.
“Não tenho dúvida de que a decisão do Conselho Universitário, majoritariamente favorável ao afastamento de Recktenvald, expressa a vontade da ampla maioria da comunidade acadêmica”.
Na visão de Ribeiro, as atitudes do atual Presidente da República representam um desrespeito à autonomia universitária e a MP 914 representa um enorme retrocesso. “Temos um grande desafio pela frente, que consiste em derrotar essa MP”, afirma o docente.
“Não dá pra empurrar esse problema com a barriga. Se continuar assim, Bolsonaro poderá nomear quem ele quiser pelos próximos três anos. Seus nomeados por sua vez, escolherão diretores de campi e unidades acadêmicas conforme suas preferências pessoais, mudando a configuração das universidades, que se caracterizam justamente pela independência e pluralidade”.
Segundo Ribeiro, “precisamos de emenda que se contraponham às medidas arbitrárias, do apoio e das mobilização das entidades sindicais, estudantis e de dirigentes das universidades”.
Redação precária
Mal redigida, a MP deixa dúvidas quanto à possibilidade de reeleição de reitores: “o reitor e aquele que o houver sucedido ou substituído no curso do mandato por mais de um ano não poderá ser nomeado para mais de um período sucessivo”, diz o texto. Justamente por ser tão confuso, o texto pode dar margem a diferentes interpretações, aumentando a probabilidade de se precisar recorrer à Justiça sempre que surgir um candidato à reeleição.
Além disso, diretores de unidade e diretores-gerais de campi ficam impedidos de disputar a reeleição: a escolha e a nomeação para tais cargos passam a ser realizadas diretamente pelo reitor. Em relação ao modelo de voto paritário entre docentes, estudantes e técnicos, que vinha sendo posta em prática em muitas instituições, Ribeiro lamenta que a MP preveja peso de 70% para o voto dos professores e de apenas 15% para os votos do corpo discente e dos técnicos, respectivamente.
“Trata-se de uma excessiva concentração de poder nas mãos dos reitores e do presidente da República”, destaca.
O documento da ADUF Dourados enfatiza que, desde sua nomeação, a reitora vem praticando diversas arbitrariedades. Dentre os exemplos de atropelos contra a democracia e a autonomia universitária elencados no texto da entidade sindical, incluem-se o aparelhamento das pró-reitorias, a reintegração arbitrária de seis estudantes que haviam sido desligados por fraude contra a lei de cotas étnico-raciais e o frontal desrespeito à eleição de diretor e vice-diretor da Faculdade de Educação, onde a chapa vencedora foi exonerada apenas 19 dias depois da posse.
“Não bastasse todo esse leque de atitudes autoritárias, a interventora também tem colocado em risco o bom funcionamento das atividades da UFGD, com o adiamento das reuniões do Conselho Universitário e o desrespeito às decisões desse importante colegiado”, esclarece o documento.
Na avaliação dos entrevistados, as universidades que se acham hoje em litígio com a Presidência da República pelos direitos de manter sua autonomia e de ver a vontade da comunidade acadêmica sendo respeitada encontram-se instáveis e até mesmo paralisadas. O texto da ADUF Dourados sintetiza: “as gritantes contradições da universidade pública precisam ser enfrentadas para aprofundar sua democracia interna e seu caráter social, evitando o autoritarismo estatal e as investidas neoliberais que pretendem submeter as instituições aos interesses do mercado, como bem sinaliza o Projeto de Lei conhecido por ‘Future-se’’’.
Fonte: InformANDES/2020 (Informativo n.º100, janeiro 2020, p. 14-15) Adaptado.