Análise explicativa da “PEC Emergencial” e seus impactos na educação e no serviço público

Vimos, por intermédio da presente Nota Técnica, em atenção à solicitação feita a esta Assessoria Jurídica Nacional, apresentar análise do teor da Emenda Constitucional no 109, publicada no Diário Oficial da União em 16.3.21, que é oriunda da PEC Emergencial apresentada no ano de 2019 pelo atual governo e que que dispõe sobre as medidas emergenciais do Plano Mais Brasil.

A EC no 109/21 é uma das medidas mais duras já aprovadas no ordenamento jurídico brasileiro desde a redemocratização do Estado. Trata-se de alteração da Constituição Federal que permite a instituição de mecanismos de ajuste fiscal sobre o gasto público, que serão acionados sempre que as despesas obrigatórias da União superarem 95% da despesa total sujeita ao teto de gastos. No caso dos Estados e Municípios, esse mesmo ajuste será acionado quando as despesas correntes(1) superarem 95% das receitas correntes(2) , mas essa parte do texto somente entrará em vigor a partir do início da primeira legislatura municipal após a publicação da EC 109/2021.

A Emenda Constitucional também prevê que uma lei complementar disporá sobre a sustentabilidade da dívida pública, especificando: a) indicadores de sua apuração; b) níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida; c) trajetória de convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação; d) medidas de ajuste, suspensões e vedações; e) planejamento de alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida. Perceba que aqui há uma previsão constitucional bastante sensível e que coloca não apenas o patrimônio público em risco, mas a adoção de medidas futuras incertas e que podem comprometer significativamente a classe trabalhadora brasileira.

Também foi previsto no texto constitucional que todos os entes federativos deverão conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, de acordo com a lei complementar acima mencionada, bem como que a elaboração e a execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida. Ou seja, enquanto a maioria dos países do mundo projeta um aumento da dívida pública em decorrência da pandemia de coronavírus, o Brasil adota uma política fiscal que pretende garantir o equilíbrio da dívida, sinalizando que ao invés de investimentos em programas sociais, de proteção social e de saúde pública, ele promoverá maior arroxo fiscal. No contexto latino-americano, o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Luís Moreno, aponta que:

“La gran pregunta es si todo lo que conseguimos en los últimos 15 años en términos de reducción de pobreza y pobreza extrema, con la incorporación de algunos latinoamericanos a las clases medias, se va a perder o si por el contrario la capacidad de los sistemas sociales y todo el impulso de los Gobiernos de aumentar la deuda y el gasto público logra amortiguar los efectos. Todos están fortaleciendo los programas de transferencias que se desarrollaron hace ya casi dos décadas y que han tenido muchísimo éxito, a pesar de seguir siendo la región más desigual del mundo. Sin duda la crisis va a tener efecto, pero si los tiempos no son tan largos y encontramos estrategias de salida, es posible que no se acentúe tanto.”(3)

O Brasil caminha em direção contrária. Ao invés de focalizar no combate ao vírus com estratégias comprovadamente eficazes, como isolamento social, uso de boas máscaras, higienização das mãos e, sobretudo, vacinação da população brasileira, somos diariamente confrontados pelo atual Presidente e seu séquito com descrença da ciência, propagação de medicamentos sem qualquer validade terapêutica, estímulo às aglomerações, fake news, e nenhuma medida realmente eficaz de manutenção da economia. Descolados da realidade mundial, o Brasil vacinou cerca de 4% de sua população, em um processo lento e ineficaz, mesmo diante de um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, mas que, sozinho, sem investimento e sem a aquisição de vacinas, não consegue responder à irresponsável política genocida de Jair Bolsonaro.

Na república tupiniquim, os gastos públicos do Governo Federal foram destinados ao reajuste da remuneração dos militares, à aquisição de medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina, sob a falsa propagação de “tratamento precoce” e, como não poderia deixar de ser, ao leite condensado. O texto da Emenda Constitucional no 109/2021 não é claro sobre quais medidas de ajuste, suspensão e vedação poderão ser criadas, mas considerando a sanha restritiva do Governo Federal e a sua verve evidentemente ultraliberal, é bastante crível que medidas relacionadas à dívida pública impliquem em restrições na folha de pagamento do funcionalismo público. Os “inimigos da nação” da política guerdista são continuamente atacados, ainda que os profissionais da saúde e educação sejam aqueles que, de fato, respondam pela maior parte dos avanços positivos em relação à pandemia.

Ainda quanto a este ponto, o parágrafo único do art. 163, incluído pela EC 109/2021, salienta que a referida lei complementar poderá autorizar a aplicação das vedações previstas no art. 167-A, trecho este que também foi incluído no texto constitucional pela EC 109/2021, e diz, em síntese, que se no período de 12 (doze) meses, a relação entre despesas correntes e receitas correntes superar 95% no âmbito do Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, é permitido que os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público, Tribunal de Contas e Defensoria Pública dos entes federativos, apliquem mecanismo de ajuste fiscal específico, durante o período de permanência da situação de descompasso, sendo permitido vedar:

I – concessão, a qualquer título, de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de membros de Poder ou de órgão, de servidores e empregados públicos e de militares, exceto dos derivados de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de austeridade;

II – criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;

III – alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

IV – admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, ressalvadas:
a) as reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de despesa;
b) as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios;
c) as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 desta Constituição; e
d) as reposições de temporários para prestação de serviço militar e de alunos de órgãos de formação de militares;

V – realização de concurso público, exceto para as reposições de vacâncias previstas no inciso IV deste caput;

VI – criação ou majoração de auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério Público ou da Defensoria Pública e de servidores e empregados públicos e de militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivados de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de que trata este artigo;

VII – criação de despesa obrigatória;

VIII – adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação, observada a preservação do poder aquisitivo referida no inciso IV do caput do art. 7o desta Constituição;

IX – criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, bem como remissão, renegociação ou refinanciamento de dívidas que impliquem ampliação das despesas com subsídios e subvenções;

X – concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária.

Veja, porém, que se no âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios a despesa corrente superar 85% da receita corrente, ainda que não exceda o percentual de 95%, essas medidas já poderão ser, no todo ou em parte, implementadas pelo Presidente da República com vigência imediata, após prévia submissão à apreciação do Poder Legislativo em regime de urgência, sendo permitido aos demais poderes também implementá-las. Um ponto importante desse artigo (art. 167-A, §6o, inciso II) é aquele que veda as possibilidades de tomada de operação de crédito por parte dos entes federativos envolvidos com outro ente da Federação, até que todas as medidas acima relacionadas tenham sido adotadas por todos os poderes e órgãos nele mencionados. A despeito do texto constitucional facultar a adoção das medidas relatadas, esse gatilho certamente as impõe aos entes federativos que necessariamente demandam políticas de crédito com a União e os Estados.

Essas mesmas vedações são permitidas à União (ADCT, art. 109), em desfavor dos servidores e empregados públicos federais, mas quando a proporção da despesa obrigatória primária em relação à despesa primária total for superior a 95% (noventa e cinco por cento), aplicando-se ao respectivo Poder ou órgão, até o final do exercício a que se refere a lei orçamentária, sem prejuízo de outras medidas, as seguintes vedações:

I – concessão, a qualquer título, de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de membros de Poder ou de órgão, de servidores e empregados públicos e de militares, exceto dos derivados de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de que trata este artigo;

II – admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, ressalvadas:
a) as reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de despesa;
b) as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios;
c) as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal; e
d) as reposições de temporários para prestação de serviço militar e de alunos de órgãos de formação de militares;

III – criação ou majoração de auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, de servidores e empregados públicos e de militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivados de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de que trata este artigo;

IV – aumento do valor de benefícios de cunho indenizatório destinados a qualquer membro de Poder, servidor ou empregado da administração pública e a seus dependentes, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior ao início da aplicação das medidas de que trata este artigo.

Caso essas vedações sejam acionadas pelo Poder Executivo, ficam vedadas a criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, bem como a remissão, renegociação ou refinanciamento de dívidas que impliquem ampliação das despesas com subsídios e subvenções e a concessão ou a ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária. Ademais, caso as vedações anteriores sejam acionadas, fica vedada a concessão da revisão geral prevista no inciso X do caput do art. 37 da Constituição Federal. Note-se que as demais medidas aplicáveis aos servidores estaduais e municipais, que surgiram com a EC 109/2021, já eram previstas aos servidores federais desde a edição da PEC do Teto de Gastos, EC 95/2016.

Sobre isso, pode-se afirmar que a Emenda Constitucional no 109/2021 é uma espécie de uma nova “PEC do Teto” dentro da Emenda Constitucional no 95/2016. Ela pretende não apenas ampliar as hipóteses em que o Governo Federal (mas também os Governos Estaduais, Municipais e Distrital) poderá reduzir os valores de subsídios e de remuneração dos servidores públicos e de empregados públicos, mas também tratar sobre a decretação do estado de calamidade pública de âmbito nacional, que é de competência exclusiva do Congresso Nacional, mediante proposta privativa do Presidente da República.

Caso ocorra a decretação do estado de calamidade pública, a União deve adotar regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades dele decorrentes, somente naquilo em que a urgência for incompatível com o regime regular, o que permite a quebra da regra de ouro e a inobservância do teto de gastos. Porém, a União deverá observar necessariamente, até o término da calamidade pública, as vedações aplicáveis aos servidores públicos. Enquanto há uma sinalização do próprio Fundo Monetário Internacional (FMI)(4) sobre a consequência da pandemia no aumento da dívida e dos déficits fiscais, o Governo Federal de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes culpabiliza sobremaneira os servidores públicos nos ajustes fiscais, enquanto deixa de taxar o lucro, as grandes fortunas e promove gastos absolutamente desnecessários com o dinheiro público. Toda a sociedade brasileira precisa de amplo apoio social e econômico, necessário à sua sobrevivência, mas também de apoio sanitário e de saúde pública. Somente com a ampla vacinação da população brasileira e com a saída de Bolsonaro do poder é que a economia terá condições de se recuperar.

Assessoria Jurídica Nacional do ANDES-SN

Leandro Madureira Silva
OAB/DF no 24.298

Rodrigo Peres Torelly
OAB/DF no 12.557

Notas:
(1) Despesa Corrente: “Classificam-se nessa categoria todas as despesas para manutenção e funcionamento dos serviços públicos em geral, são despesas que não contribuem, diretamente, para a formação ou aquisição de um bem de capital. Exemplos: material gráfico, manutenção e conservação de equipamento de processamento de dados; pen-drive; peças de informática para reposição imediata ou para estoque, despesas com diárias pagas a prestadores de serviços para a administração pública, manutenção de software, suporte de infraestrutura de Tecnologia da Informação e Comunicação – TIC, suporte a usuários de TIC.” (consultado em 23/02/2021, no link: https://conteudo.tesouro.gov.br/manuais/index.php?option=com_content&view=article&id=1567:)
(2) Receita Corrente: “É o somatório das receitas tributárias, de contribuições, patrimonial, agropecuária, industrial, de serviços e outras e, ainda, as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender às despesas classificáveis em despesas correntes. São as que aumentam a disponibilidade, afetando positivamente o Patrimônio Líquido.” (consultado em 23/02/2021, no link: http://www.fazenda.rj.gov.br/contabilidade/content/conn/UCMServer/uuid/dDocName%3A1602048)
(3) https://elpais.com/economia/2020-04-09/esta-crisis-nos-va-a-obligar-a-tener-mucha-mas-cohesion-como-sociedades.htmll
(acessado em 17/03/2021)
(4) https://www.imf.org/pt/News/Articles/2020/04/15/blog-fm-fiscal-policies-to-contain-the-damage-from-covid-19
 

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