Análise do teor do PL 6764/2002 que revoga Lei de Segurança Nacional (LSN) e inclui novos tipos penais ao Código Penal

Vimos, por intermédio da presente Nota Técnica, em atenção à solicitação feita a esta Assessoria Jurídica Nacional (AJN), apresentar análise do teor do Projeto de Lei (PL) no 6764/2002, que propõe a revogação da Lei de Segurança Nacional (LSN) e a inclusão de novos tipos penais ao Código Penal Brasileiro relacionados com a proteção do Estado Democrático de Direito.

De autoria do Poder Executivo, o Projeto de Lei no 6.764/2002 resultou dos estudos empreendidos pela Comissão liderada pelo ex-Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Vicente Cernicchiaro (in memorian), com a ajuda do atual Ministro da Corte do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso. Participaram do feito, também, o constitucionalista Luiz Alberto Araújo e o atual subprocurador da República, José Bonifácio Borges de Andrada.

Após quase 20 anos de sua apresentação, a Câmara dos Deputados aprovou, no dia 20 de abril, o requerimento de urgência que possibilitara a votação do Projeto sem que este passasse pela Casa. Na ocasião, apenas o PSL e o Psol foram contrários à urgência, que contou com 386 votos favoráveis e 57 abstenções. Como consequência, no dia 05 de maio, a Câmara dos Deputados votou pela aprovação do PL de Relatoria da deputada Margarete Coelho (PP-PI), cujo texto-base ainda passará pelo crivo do Senado.

As grandes preocupações no que concerne à caracterização de urgência para a aprovação do PL envolvem os perigos de apreciação da matéria sem a existência de um debate amplo com a participação de todos os setores da sociedade brasileira, nomeadamente movimentos sociais e a sociedade civil, fortes expoentes da luta diária pela construção do Estado Democrático de Direito no Brasil.

Nessa seara, a atual conjuntura política brasileira, inserida em um contexto de grave pandemia figurou inexorável óbice à consecução deste debate de extrema relevância, o que ensejou maior receio quanto a iminente possibilidade de que a aprovação definitiva desta proposta possa ampliar a criminalização de movimentos sociais e o ativismo da sociedade civil organizada.

De fato, a Lei de Segurança Nacional representa um escombro autoritário remanescente da Ditadura Militar e que é explicitamente incompatível com a Constituição Federal. Todavia, qualquer substituição de seu texto exige um debate esmerado cuja oportunidade não conflui com a conjectura hodierna, caracterizada por uma política deletéria e uma desgastada democracia, arraigada pelo lasso de suas instituições.

O debate não é recente, como supramencionado, nele já integraram diversas entidades sociais, todas a defenderem o manto que consagra uma nova lei a partir da proteção destas instituições assente no consenso das diversas bases constituintes da doutrina de segurança nacional.

Por oportuno, cumpre mencionar que o animus legislativo no Código Penal Brasileiro sempre se fez no sentido de a criminalização ser a última das medidas a serem usadas na defesa da democracia, de sorte que a proteção dos direitos constitucionais do indivíduo ad aeternum deve vir em primeiro lugar. Ora, a salvaguarda do Estado Democrático de Direito a partir da revisão e substituição de suas leis deve pautar-se pela primazia da Constituição, na medida em que se consolidem e fortifiquem seus princípios em defesa da democracia e não ser edificada pela lógica punitivista do direito penal.

Toda lei que objetive a proteção do Estado Democrático de Direito deve, prioritariamente, ser tracejada pelo arcabouço normativo assentado nos princípios democráticos da Constituição e não na matéria do direito penal.

In casu, a inserção de novos tipos penais no Código Penal Especial que tipificam crimes como “espionagem” “conspiração” e outros, figuram até contraditórias ao intuito de uma lei que almeja a proteção do Estado de Direito porquanto reflete a lógica persecutória do direito penal do inimigo, colocando indivíduos em posições antagônicas ao Estado e, portanto, suprimidos de seus direitos fundamentais, sobretudo os de liberdade de manifestação do pensamento.

Antes de adentrarmos, contudo, ao mérito das proposições do PL cumpre rememorar o contexto social e político em que se desenvolveu a Lei de Segurança Nacional (Lei no 7.170/83) cuja matéria ensejou a doutrina de segurança nacional, tema do PL ora discutido.

O primeiro dispositivo associado à então LSN, foi a Lei 38, de 4 de abril de 1935, sancionada pelo então Presidente da República Getúlio Vargas, que dispôs sobre os “crimes contra a ordem política e social”. Após, outros atos normativos foram sendo elaborados para preencher as lacunas desta Lei, dentre as quais a Lei no 136 de 1935, que trouxe mais previsões de crimes; a Lei no 244/1936, que criou o Tribunal de Segurança Nacional, responsável por julgar os crimes definidos nestas leis; e a Lei no 1.802, editada em 1953, que revogou a anterior, definindo crimes contra o Estado e a ordem político-social.

O termo “segurança nacional” surgiu do Decreto-Lei 314, já no regime de ditadura militar, cujo teor definia “os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social e outras providencias”. A atual LSN foi definida pela Lei no 7.170, de 14 de dezembro de 1983 e completou os dispositivos anteriores aos definir “os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências”, prevendo os crimes que lesam ou põem a perigo de lesão: “a integridade territorial e a soberania nacional; o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; e a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.

O Supremo Tribunal Federal ao analisar a tipificação das condutas que se enquadrariam em crimes contra a segurança nacional, consignou que além da subsunção ao tipo penal deverá ser verificada a intenção do autor, conforme o art. 2o da LSN. Senão, vejamos:

          1. O Supremo Tribunal Federal, a partir de interpretação sistemática da Lei no 7.170/83, assentou que, para a tipificação de crime contra a segurança nacional, não basta a mera adequação típica da conduta, objetivamente considerada, à figura descrita no art. 12 do referido diploma legal.
          2. Da conjugação dos arts. 1o e 2o da Lei no 7.170/83, extraem-se dois requisitos, de ordem subjetiva e objetiva: i) motivação e objetivos políticos do agente, e ii) lesão real ou potencial à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação ou ao Estado de Direito. Precedentes.
          3. Na espécie, o recorrente foi flagrado na posse de armas de fogo e de duas granadas de mão, material privativo das Forças Armadas, quando pretendia roubar uma agência bancária.
          4. Ausentes a motivação política, bem como a lesão a quaisquer dos bens juridicamente tutelados pela Lei de Segurança Nacional (art. 1o da Lei no 7.170/83), a conduta do recorrente não se (sic) subsume no art. 12, parágrafo único, da Lei no 7.170/83. (…) (destacou-se).(STF, RC 1.472, Rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, julgamento em 25.05.2016)

Ainda, no julgamento do RC 1.473 o Ministro-Relator Luiz Fux asseverou que a definição de crime político “para os fins do art. 102, II, b, da Constituição Federal, são aqueles dirigidos, subjetiva e objetivamente, de modo imediato, contra o Estado como unidade orgânica das instituições políticas e sociais e, por conseguinte, definidos na Lei de Segurança Nacional, presentes as disposições gerais estabelecidas nos artigos 1o e 2o do mesmo diploma legal”.

Em que pese os avanços da referida lei sobre os dispositivos anteriores que chegaram a instituir até penas de morte, ela manteve entranhada em seu bojo princípios e conceitos inconciliáveis com o Estado Democrático de Direito, e que, por conseguinte, não encontram amparo na CRFB/88. Assim, após o advento da Constituição da República de 1988, a norma passou a ser menos utilizada, notadamente porque a Carta Magna foi bem restrita quanto à tipificação de crimes, referenciando esparsamente em seu art. 5o, XLIV que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

Todavia, a conjectura política decorrente do pós eleição 2018 calcada no fervor político, bem como na fragilidade das instituições democráticas, tem reavivado os institutos da LSN, sobretudo dentro dos grupos políticos. A exemplo, só no último ano, a LSN foi suscitada pelo Governo federal como forma de enquadrar servidores do Ministério da Saúde no caso de divulgação de informações relacionadas ao gabinete do Chefe da Pasta, obrigando os servidores a assinarem um termo de responsabilidade. Em outro momento, o Ministro da Justiça havia mencionado que solicitaria a abertura de uma investigação em face do cartunista Renato Aroeira por conta de uma charge que ele havia produzido em crítica à atuação do Presidente da República. Destaca-se, ainda, o ocorrido com o jornalista Hélio Schwartsman, da Folha de São Paulo, que publicou artigo com críticas ao Chefe do Poder Executivo federal.

Diante disso, nota-se que muito embora o contexto social e político da implantação da LSN tenha se diversificado ao longo do tempo, seu teor continua firmando um desprestígio ao Estado de Direito, servindo, na maior parte das vezes, como instrumento para minar princípios da Constituição da República usando como subterfúgio uma suposta mácula à segurança nacional.

Tais acontecimentos clarificaram, inclusive no cenário político, a necessidade de substituição do texto por uma legislação atinente às necessidades da atual sociedade brasileira e que preveja a proteção do Estado Democrático de Direito. Nesse ínterim, sobreveio a Comissão de Juristas que elaborou o texto propulsor do Projeto de Lei no 6764/2002, encaminhado, à época, ao Ministro da Justiça, Miguel Reale Jr.

Nada obstante, o texto-base deste PL, uma vez que busca no direito repressor a solução do abuso legislativo da LSN tende a incorrer em grandes riscos ao Estado de Direito e os seus valores, sobretudo por sua natureza vaga e pouco taxativa.

A propositura, composta de 25 artigos, sugere os seguintes tipos penais:

Crimes contra a soberania nacional

Atentado à soberania: tentar submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país, empreendendo ação para ofender a integridade ou a independência nacional.
Traição: entrar em entendimento ou negociação com governo ou grupo estrangeiro com o fim de provocar guerra ou atos de hostilidade contra o País, desmembrar parte do seu território, ou invadi-lo.
Violação do território: violar o território nacional com o fim de explorar riquezas naturais ou nele exercer atos de soberania de outro país.
Atentado à integridade nacional: tentar desmembrar parte do território nacional, por meio de movimento armado, para constituir país independente.
Espionagem: obter documento ou informação essencial para o interesse do Estado brasileiro ou classificados como secretos ou ultra-secretos, com o fim de revelá-los a governo ou grupo estrangeiro.

Crimes contra as instituições democráticas

Insurreição: tentar, com emprego de grave ameaça ou violência, impedir ou dificultar o exercício do poder legitimamente constituído, ou alterar a ordem constitucional estabelecida.
Golpe de Estado: funcionário público civil ou militar tentar depor o governo constituído ou impedir o funcionamento das instituições constitucionais.
Conspiração: duas ou mais pessoas se associarem para a prática de insurreição ou golpe de Estado.
Atentado à autoridade: atentar contra a integridade física do presidente ou o vice-presidente da República ou os presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal, do Procurador-Geral da República; ou contra as autoridades correspondentes dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Sequestro e cárcere privado contra as autoridades acima.
Incitamento público à guerra civil ou aos crimes previstos no capítulo.

Crimes contra o funcionamento das instituições democráticas e dos serviços essenciais

Terrorismo

– por motivo de facciosismo político ou religioso, com o fim de infundir terror, praticar o seguintes atos:
– devastar, saquear, explodir bombas, sequestrar, incendiar, depredar ou praticar atentado pessoal ou sabotagem, causando perigo efetivo ou dano a pessoas ou bens;
– apoderar-se ou exercer o controle, total ou parcialmente, definitiva ou temporariamente, de meios de comunicação ao público ou de transporte, portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, instalações públicas ou estabelecimentos destinados ao abastecimento de água, luz, combustíveis ou alimentos;

– suprimir ou modificar dados, interferir em sistemas de informação ou programas de informática com fim de infundir terror.
Ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o estado democrático.
Coação contra autoridade legítima mediante violência ou grave ameaça, por motivo de facciosismo político.

Crimes contra autoridade estrangeira ou internacional

– Atentar contra a integridade física de chefe de estado ou de governo estrangeiro, embaixador, cônsul ou representante de estado estrangeiro no País, ou dirigente de organização internacional, que se encontrem no território nacional.
– Sequestro e cárcere privado dessas autoridades.

Miguel Reale Júnior deixa claro que optou por “não incluir no projeto outros crimes com repercussão sobre as relações internacionais, considerados crimes contra a humanidade – como genocídio e tortura, por já terem sido disciplinados em outros documentos legislativos em vigor”.

Crimes contra a cidadania

Atentado a direito de manifestação: impedir ou tentar impedir, mediante violência ou grave ameaça, sem justa causa, o livre e pacífico exercício do direito de manifestação de partidos ou grupos políticos, étnicos, raciais, culturais ou religiosos.
Associação discriminatória: constituir associação, ou dela participar, com o fim de pregar a discriminação ou o preconceito de raça, etnia, cor, sexo o u orientação sexual, condição física ou social, religião ou origem.
Discriminação racial ou atentatória aos direitos fundamentais.
Fonte: Agência Câmara de Notícias

Em verdade, as maiores preocupações estão na forma como foram tipificados estes crimes, em especial, na abertura e vagueza dos tipos penais e suas majorantes. A título exemplificativo, o crime de “insurreição” tem a pena majorada quando há, similarmente, “a propagação de fatos sabidamente inverídicos”. Ora, a inconsistência desta majorante enseja grandes riscos ao tolhimento da liberdade de expressão. Na mesma seara é o crime de incitamento à guerra civil e outros, uma vez que o dispositivo é incerto e nebuloso, gerando insegurança jurídica.

Na tipificação dos crimes de atentado à autoridade e ao direito de manifestação observam-se verdadeiras redundâncias normativas, uma vez que os tipos de “sequestro”, “lesão corporal” ou até mesmo “homicídio” já são condutas criminalizadas pelo Código Penal Brasileiro e poderiam compor de forma satisfatórias as proposições daqueles crimes.

Com efeito, a qualificação de tipos penais sem que se estabeleçam critérios objetivos de aferição do dano ou risco ao Estado de Direito podem provocar a criminalização de atividades “banais” no âmbito da segurança nacional. É justamente por este ponto que a tipificação de novos crimes, bem como a edição de leis que visem a proteção do Estado de Direito, imprescindem da participação dos diversos setores sociais que integram a luta pela eficácia dos direitos e princípios previstos constitucionalmente, sob a pena de a ascensão desses novos crimes terem efeito contrário ao Estado democrático, qual seja, o de perseguição de políticos e ativistas. Perante as limitações impostas pela pandemia que inviabilizam a participação da sociedade civil nos trabalhos do Congresso Nacional, faz-se mister aos debates que envolvam questões de liberdade de expressão e de direito de manifestação a garantia formal da ampla participação dos grupos interessados e diretamente afetados pela regulação da matéria.

Oportunamente, cumpre ressaltar que as políticas públicas que eventualmente venham a substituir os abusos da LSN, não se desvencilhem dos auspícios insculpidos na Constituição da República Federativa do Brasil, nomeadamente na fortificação dos seus princípios e normas. Com efeito, o Estado Democrático de Direito deve ser protegido por normas racionais e objetivas de modo a mitigar a segurança dos seus cidadãos. A coordenação dessas normas enseja debate público amplo e constante, uma vez que o indivíduo e, consequentemente, seus direitos de participação política e livre manifestação do pensamento constituem o corolário de um Estado democrático.

Contudo, uma política que, no momento em que morrem em média 3 mil pessoas por dia, vítimas de uma doença para a qual já existe vacina, debate a inserção de novos tipos penais em um Projeto de Lei vago e punitivista, não vislumbra a proteção do Estado, muito menos da democracia. Se a democracia é o governo do povo, que o parlamento se dedique ao atendimento das necessidades de sua população. Nossa urgência é o fortalecimento da saúde pública. Nossa urgência é salvar vidas.

Sendo o que tínhamos para o momento, colocamo-nos à inteira disposição para quaisquer esclarecimentos que sejam necessários.

Atenciosamente,

 

Leandro Madureira Silva
OAB/DF no 24.298
Assessoria Jurídica Nacional