Nota Técnica da AJN sobre a Declaração de Imunização: vinculação ao retorno presencial às aulas

Vimos, por intermédio da presente, em atenção à solicitação feita por esse Sindicato Nacional à Assessoria Jurídica Nacional – AJN, nos manifestar sobre a Declaração de Imunização imposta aos professores do Estado do Ceará, grupo prioritário nas vacinações, anuindo a vinculação da vacinação ao compromisso d e retorno às atividades presenciais no segundo semestre.

A Declaração tem sido imposta aos docentes desde o início do período de vacinação dos profissionais da Educação no Estado do Ceará, condicionando o direito à vacina à obrigatoriedade de assinatura do documento emitido pela Secretaria da Saúde (Sesa) pelo qual se comprometem a retornar às aulas presenciais no próximo semestre (2021.02).

Nos termos da Declaração, o profissional se compromete a revir à atividade presencial “desde que devidamente autorizada pela Autoridade Sanitária Municipal de onde laboro, caso ainda não tenha retornado efetivamente as minhas atividades de forma presencial“.

Em que pese a autorização das organizações Sanitárias, a vinculação da vacinação à assinatura da citada Declaração representa uma ilegalidade axiomática porquanto exprime, perante a não anuência do funcionário aos termos da declaração, evidente negativa prestacional do Estado em prover um direito garantido constitucionalmente. A exigência de retorno presencial, por sua vez, não deve estar restrita ao plano de vacinação desses profissionais, mas, sobretudo, à formalização e execução de políticas sanitárias destinadas à comunidade escolar no geral.

A orientação inibidora adotada pela Sesa vai de encontro ao próprio fundamento do sistema público de saúde qual seja, a garantia de seguridade social por meio do provimento do direito à saúde, para o qual são subsidiadas atividades administrativas e políticas públicas a regularem seu guarnecimento, de forma igualitária e universal.

Nesse sentido é o art. 196 da Constituição Federal, que exarou a máxima da saúde como direito de todos e dever do Estado, cuja garantia deverá efetuar-se mediante políticas sociais e econômicas “que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Por força deste dever do Estado, não pode este, ainda que sob o fundamento simplório de essencialidade da educação, buscar a todo custo submeter os professores ao retorno presencial sem estabelecer as condições necessárias ao retorno seguro das aulas.

Em verdade, rememorando o desgoverno na gestão sanitária, o receio instala-se, maiormente, na incerteza e vagueza do cumprimento de medidas sanitárias básicas que viabilizem o retorno seguro à comunidade escolar no geral, de tal sorte que a vacinação dos professores possa ser utilizada como parâmetro de segurança suficiente a ensejar a necessária permissão.

Esse é, inclusive, um dos pontos controvertidos da Recomendação no 006/2021 ao lucubrar que “apenas faz sentido vacinar um grupo profissional pela exposição da profissão se estivessem em trabalho presencial e que apenas foi autorizado o retorno do ensino infantil e fundamental em alguns Municípios do Estado.”(destacou-se).

Ocorre que, seguindo esta lógica, restringe-se a segurança do retorno das aulas de forma presencial à simples vacinação dos professores, quando sabemos que esta é apenas uma medida mitigadora da mortalidade, o que não anula a relevância de políticas sanitárias que assegurem um ambiente escolar menos danoso à saúde dos alunos, professores, demais profissionais do sistema educacional e de todos aqueles que orbitam a sua vida, incluindo seus próprios familiares.

É por esse motivo que imersivas lutas têm sido empregadas no sentido de garantir um amplo plano de vacinação que envolva não só professores, mas toda a comunidade escolar, inclusos os alunos, o que por si só, justificaria a decisão de não retornar às salas uma vez não constatados estes condicionantes.

O próprio Plano de Operacionalização de Imunização das vacinas asseverou que “Considerando a transmissibilidade da covid-19 (R0 entre 2,5 e 3), cerca de 60 a 70% da população precisaria estar imune (assumindo uma população com interação homogênea) para interromper a circulação do vírus. Desta forma seria necessária a vacinação de 70% ou mais da população para eliminação da doença, a depender da efetividade da vacina em prevenir a transmissão”. Em razão disso, frisou que diante da indisponibilidade de vacina, o objetivo principal passa a ser focado na redução da mortalidade causada pela covid-19, bem como a proteção da força de trabalho.

Diante disso, é notório que a motivação da classificação dos profissionais de educação como grupo prioritário é, preliminarmente, criar condições para o retorno de atividades presenciais, o que não descarta a necessidade de estruturação das escolas e a imunização ampla da comunidade escolar como parâmetros imprescindíveis a ensejar o conforto do docente em escolher seu retorno ou não.

Com efeito, pela Declaração de Imunização e pela Recomendação do Ministério Público 006/2021, há uma deturpação da lógica de vacinação ao buscar garantir um direito sob a circunstância de que o objeto protegido esteja necessariamente submetido ao iminente risco quando, em verdade, o que deve ser assegurado é que em eventual exposição ao risco pela categoria, sejam garantidos mecanismos de menor contágio e transmissibilidade. Isto posto, a proteção da vacina não deve ser apenas no sentido de conter os sintomas, mas contribuir para as menores taxas de transmissibilidade, o que só poderá ter plena eficácia aliado a políticas de gestão pública nos ambientes escolares.

A teratológica exigência de retorno das aulas diante da contínua omissão do Estado em prover políticas sanitárias para que isto ocorra não pode ser justificada sob o manto da política de vacinação, porquanto revela medida não só de fuga das responsabilizações do Estado para com a saúde dos alunos e trabalhadores, mas também a paupérrima providência de resolução da problemática de forma completamente invasora e intimidatória.

A determinação contraria, além dos citados corolários constitucionais, os princípios defendidos pela Lei 8.080/1990, que estabeleceu as diretrizes do SUS, cujo artigo 3o asseverou a proteção à saúde como uma expressão de organização social e econômica, tendo como determinantes e condicionantes, inclusive, o trabalho, renda e educação:

Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. (Redação dada pela Lei no 12.864, de 2013).

Na mesma seara, a legislação é peremptória ao assegurar a autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral, cuja observância deve ser compulsada às ações e serviços públicos de saúde, senão vejamos:

Art. 7o As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

Iuniversalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;
III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;
IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
V – direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;
VI – divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário;
VII – utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática;
VIII – participação da comunidade;

Por outro lado, a Lei em comento positivou o significado de saúde do trabalhador para o SUS e garantiu poder aos sindicatos para atuarem em defesa da saúde dos trabalhadores de suas categorias:

Art. 6o Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):

I – a execução de ações:
c) de saúde do trabalhador; e (…)
§ 3o Entende-se por saúde do trabalhador, para fins desta lei, um conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho, abrangendo:

VIII – a garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão competente a interdição de máquina, de setor de serviço ou de todo ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida ou saúde dos trabalhadores.

De se ver que, em momento algum, a vacinação ou qualquer política do SUS esteve atrelada a algum normativo de poder/dever, mas, tão somente, ao direito universal e integral de assistência de políticas públicas das quais devem ser garantidas as participações da comunidade.

Na mesma linha, o Programa Nacional de Imunização foi claro ao afirmar que “todos os grupos elencados [prioritários] serão contemplados com a vacinação, entretanto de forma escalonada por conta de não dispor de doses de vacinas imediatas para vacinar todos os grupos em etapa única”. Por este diapasão, o direito aqui discutido, qual seja  de acesso às ações públicas de saúde, prevalece ao interesse público, de tal sorte que este
escalonamento servirá, antes de tudo, para condicionar critérios de retorno a atividades fundamentais ressalvados, no entanto, os direitos à saúde física e mental.

De nossa parte, entendemos que a conduta de exigência de assinatura da declaração como forma de tornar a vacinação um direito vinculativo não encontra respaldo nem na Constituição Federal nem na Lei do SUS. Assim, acaso o Estado mantenha seu posicionamento de condicionar a vacinação dos profissionais de educação à exigência de retorno às atividades presenciais, será necessário promover a discussão em juízo, garantindo-se o gozo do direito, como grupo prioritário assegurado pelo Programa Nacional de Operacionalização da Vacinação, independentemente dessa exigência.

Sendo o que tínhamos para o momento, colocamo-nos à inteira disposição para quaisquer esclarecimentos que sejam necessários.

Atenciosamente,

Leandro Madureira Silva
OAB/DF 24.298
Assessoria Jurídica Nacional – AJN